terça-feira, fevereiro 06, 2007


.
.
.
Mural fotográfico para a ITN em Londres. Noel Myles (1996)



O pequeno e o grande em fotografia
Encontrar a escala certa duma prova fotográfica é uma decisão estética
.

.
..........Sou daqueles que acreditam que não vem mal ao mundo por se apreciar a fotografia em termos das suas parentes próximas – o desenho, a pintura e a escultura, a literatura. Uma fotografia é também uma imagem, um objecto (uma folha de papel ou um ecrã numa máquina digital), um documento (que, no dizer errado, vale mil palavras). Já agora, a citação correcta é: “um olhar vale mil palavras”, ou “uma fotografia vale dez mil palavras”, ambas inventadas como provérbios orientais por um publicitário americano, Frederick R. Barnard, em 1921. O que não entendo é o escamoteamento doutras, bem mais importantes, qualidades – a presença do caos e do acaso, a possibilidade de reenquadramento e manipulação, a escala e a multiplicidade. Dum negativo ou de um pacote de informação digital podem extrair-se, sem perda de qualidade, tantos exemplares quantos se quiserem. É antifotográfico limitar a tiragem. Por antifotográfico quero dizer que contraria o próprio carácter da fotografia.
..........Que define, então, o carácter da fotografia, esse objecto plano desenhado a luz? Os aspectos atrás referidos são importantes, mas o mais importante de todos é o facto de a fotografia ser infinitamente reprodutível em qualquer escala (para maior ênfase, uso deliberadamente o exagero dos “infinitamente” e “qualquer”). Esta liberdade – porque é de uma enorme liberdade que se trata - advém-lhe de ser feita por uma máquina (embora os chamados fotogramas ou raiografos a dispensem). Mas há uma diferença importante entre as duas variáveis. O tamanho da edição é determinado pela procura; a escala é uma decisão estética que tem a ver com a qualidade e quantidade de informação que se quer transmitir. Há excelentes imagens latentes estragadas pelas dimensões com que foram reveladas. Também há fotografias banais valorizadas pelas dimensões com que foram impressas. Encontrar a escala exacta, eis a questão.
..........Em fotografia, é comum o erro de tomar a parte pelo todo. Quero dizer, vê-se uma prova ou vê-se uma imagem num jornal, revista ou livro e julga-se que a fotografia é “aquilo”. Bem, às vezes é – quando o artista a imaginou e criou para o jornal ou revista (ou para ser enviada por fax). Mas não lembra ao diabo pensar que a reprodução duma pintura num livro de história de arte seja a própria pintura!
..........Ao imprimir uma prova ou ao exigir controlar o “lay-out” da publicação, o fotógrafo tem de tomar uma decisão: a do tamanho final da imagem (além do enquadramento). Nela pesam os três intervenientes: o autor da foto, o sujeito da foto, o observador da foto. Pondo de lado a fotografia publicada, a merecer outro tipo de discussão, concentremo-nos na chamada prova final, em papel decente, obtida por via aquosa, jacto de tinta, laser ou qualquer outra técnica de impressão digital.
..........Em geral, o destinatário da prova é um de dois: o(a) amigo(a) sentimental ou o coleccionador (que pode ser também o próprio autor, galeria ou museu). Se a transferência é emocional (oferta a parente ou amigo), a prova é quase sempre pequena. Um presente é para ser desembrulhado, manuseado e tacteado (com ou sem luvas). Se o destino é a parede, é preciso atender ao ambiente, presença de outras imagens e objectos, iluminação, etc., mas a regra de ouro aponta para uma distância ideal de apreciação que é duas vezes e meia o comprimento da diagonal da imagem. Para uma fotografia de 30x40 cm, significa um recuo de 125 cm. Conclusão: as dimensões da sala põem um limite às dimensões da própria fotografia. Há provas que não podem ser mostradas em certas sítios (e não só por uma questão de pudor).
..........O sucesso da chamada “carte-de-visite” (c-d-v), uma espécie de cartão de visita fotográfico inventado por André-Adolphe Disdéri em 1858, tem a ver com o primeiro dos destinos acima citados: uma imagem (retrato) de 9x6 cm, do tamanho do coração, que cabe na palma da mão (ou na carteira); ainda por cima com a vantagem de vir multiplicado por 4 ou 6, graças ao número de objectivas da câmara fotográfica de Disdéri. Se o sujeito era célebre (reis, artistas, cientistas, políticos, etc.), as tiragens podiam facilmente atingir os milhares (o que não impede algumas c-d-v de serem hoje transaccionadas por milhares de dólares). O daguerreótipo era similarmente intimista, em geral 6x5 cm, mas com o grave inconveniente de ser exemplar único (e por isso não vingou). “Small is beautiful” e “tudo o que é pequenino é engraçadinho”. Em geral, o povo tem razão.
..........Mas o que verdadeiramente determina a escala ideal da fotografia é o sujeito, o seu conteúdo. Há coisas que merecem e ganham em ser ampliadas. Outras, pelo contrário, desintegram-se à nossa vista quando inchadas fora de todas as proporções (a expressão é vernácula, mas exacta). O significado depende do tamanho (e poucas imagens são suficientemente ricas para admitir vários significados). A coerência da informação depende da escala.
..........Encontrar a escala certa é um exercício a que muito poucos fotógrafos se dedicam, mas é ele que pode determinar o sucesso ou falhanço duma imagem. Em Portugal, Gérard Castello-Lopes tem escrito inteligentemente sobre o assunto, e José Luís Neto pratica-o com mestria. As imagens de “Irgendwo” (1998), o eloquente testemunho de amor que Neto presta à sua mulher, não só cabem na palma da mão, cabem até numa unha! No extremo oposto, em “22474” (2000), os minúsculos rostos encapuçados dos prisioneiros duma foto de Joshua Benoliel de 1912 são ampliados até ao estandardizado 40x30 cm; o grão não só acentua o carácter espectral da imagem como, paradoxalmente, confere uma personalidade própria a cada um destes reclusos sem rosto. Tal como Gulliver, Neto visita confortavelmente Lilliput e Brobdingnag (os países dos anões e dos gigantes, respectivamente).
..........A escala só é indiferente se o assunto tiver um carácter fractal, isto é, quando o pormenor reproduz o conjunto. Pense-se, por exemplo, no olho da espiral que continuamente se desenrola (ou enrola). Um objecto fractal não tem nenhuma escala e tem todas as escalas, isto é, pode ser apreciado a qualquer distância e em qualquer tamanho. Boas analogias são o estilo rococó ou a arquitectura Beaux-Arts, tão cheios de pormenores e elementos decorativos de todos os tamanhos que impressionam tanto ao longe como ao perto. Ou uma floresta, onde qualquer ramo de árvore é uma árvore em miniatura. Suspeito que as belas fotografias que Josef Sudek tirou nos bosques e florestas da Morávia funcionariam em qualquer dimensão, da prova de contacto, que ele preferia, ao mural de vários metros quadrados. Acontece o mesmo com fotocolagens iniciadas e popularizadas por David Hockney nos anos 1990. Um exemplo extremo é o mural compósito criado por Noel Myles para a ITN em Londres.
..........Só mais duas histórias exemplares sobre escala e tiragem (i)limitada. Nos anos 1980 resolvi adquirir uma imagem do fotógrafo japonês Eikok Hosoe, da famosa série “Abraço”. O galerista informou-me que havia vários formatos disponíveis, com preços variáveis (aumentando com a dimensão). Quando, passados meses, fui recolher a prova acabada de imprimir pelo artista, verifiquei, com espanto, que a imagem propriamente dita continuava do mesmo tamanho pequeno (pouco maior que um c-d-v), o rectângulo do papel branco é que tinha as dimensões por mim escolhidas, as habituais 10x8” (25x20 cm). Nesse tempo, Hosoe imprimia as imagens sempre do mesmo tamanho íntimo, independentemente do tamanho escolhido para o papel. Era assim que (a imagem) funcionava.
..........A outra história refere-se a Ansel Adams, o mais célebre fotógrafo de paisagens do século XX, instrumental na formação duma consciência ecologista. Porque será que a sua fotografia mais cara e valiosa não é sequer a melhor ou a mais rara, mas aquela da qual há mais exemplares, talvez mais de um milhar – o célebre Moonrise, Hernandez, New México, ou Nascer da Lua sobre Hernandez, de 1941 (que é, afinal, um pôr-do-sol)?
Há coisas em que o tamanho é moda – as saias, por exemplo (sou do tempo das mini-saias e das “hot-pants”). Ou a preferência estética, na Renascença, pela genitália masculina pequena (basta lembrar o David ou o Adão de Michelangelo, na Capela Sistina). Infelizmente, as dimensões das fotografias não podem ser uma questão de moda – a menos que se esteja disposto a atraiçoar o carácter da própria fotografia enquanto arte. A obsessão actual por grandes imagens, independentemente do seu conteúdo, faz-me lembrar a fábula da rã que queria ser boi. Sabe-se o que aconteceu. Dizem-me que em Portugal as fotografias pequenas não se vendem. O que mostra que grande, em fotografia, não é arte, mas comércio.


Jorge Calado in Expresso, revista Actual de 24 de Setembro de 2005, pág. 43/44





..........................
.
José Luís Neto (série "22474", 2001).............................Carte-de-visite de Disdéri (1858)........................



1 comentário:

henri dreifuss disse...

"Dizem-me que em Portugal as fotografias pequenas não se vendem. O que mostra que grande, em fotografia, não é arte, mas comércio"

nem sempre. é com este tipo de frase que uma pessoa perde credibilidade.... no subtítulo o jorge calado ainda dá a hipótese de ser uma opção estética, mas no final lá vem o ressabiado portugues ao de cima. Em Portugal os fotógrafos não tomam opções estéticas mas comerciais, calado dixit. São estas as INGenuidades?