quinta-feira, março 15, 2007





Mistérios da Cor

Será preciso recomeçar a fabricar os papéis e a preparar pigmentos
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Fotografia Russel Lee, «Faro e Doris Caudill, camponeses, Pie Town, Novo México, 1940» (Colecção FSA/OWI)
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No cinema, o preto e branco está reduzido a uma memória. Na fotografia, continua vivo em corpos tão distintos como as obras de Sebastião Salgado ou do casal Becher. Até quando? É conveniente lembrar que, exceptuando o acidente da daguerreotipia, o verdadeiro preto e branco só começou no último quartel do século XIX, com a emergência da platinotipia e do uso dos papeis secos gelatinados, à base dos halogenetos de prata (brometo e cloreto). Até aí vigorava a monocromia castanha e vínica das provas albumínicas e afins. Quanto à cor, se se justificava, era adicionada à mão (um aperfeiçoamento imprescindível, do ponto de vista comercial, para os fotógrafos estabelecidos no Japão).
As primeiras discussões sobre a qualidade estética e valor artístico da fotografia passaram ao lado da cor; aos praticantes interessava mais o debate sobre a honestidade da câmara vs. a de quem a operava. Inevitavelmente, a cor surgiu com os autocromos dos irmãos Lumière, comercializados a partir de 1907. A placa de vidro era coberta com uma fina camada de grãos de amido de batata, tingidos de vermelho, azul e verde, e o resultado aproximava-se de uma pintura quase impressionista (ou pontilhista). Mas o espectro cromático do produto final era algo distorcido, favorecendo os tons suaves do anil e da cor do mel. Reputados fotógrafos do preto e branco, como Edward Steichen (1879-1973), entusiasmaram-se, mas depressa voltaram às gelatinas e sais de prata.
Quando, nos anos 30, a cor veio finalmente para ficar, foi naturalmente empurrada para a publicidade. A idade da máquina era, também, a dos electrodomésticos e da nova cozinha americana que celebrava, em tecnicolor, a independência dependente da moderna dona de casa. Nas revistas ilustradas, os foto-ensaios que galvanizavam multidões eram a preto e branco, mas os anúncios que cativavam a audiência eram a cor. A seriedade é circunspecta e não se coaduna coma as cores berrantes do arco-íris. Ainda hoje, políticos, banqueiros e gestores não dispensam os seus fatos cinzentos e gravatas (mais ou menos) discretas às riscas.
O problema estava no excesso de informação. Se já era difícil procurar o instante decisivo em que a estrutura geométrica e significado coalesciam numa mensagem una e definida, era mesmo impossível esperar que as cores, aleatórias como a vida, harmonizassem com tudo o resto. À coca na esquina da rua, o fotografo não podia pedir à fulana que passava que mudasse ou tingisse o vestido, ou que o dono da loja alterasse a cor do letreiro, para tudo « ficar melhor no retrato». O pintor comanda a paleta; o fotógrafo governa-se com o que Deus lhe dá. Num mundo a cores, a fotografia a preto e branco possuía a integridade do desenho a lápis ou tinta-da-china – rápido, incisivo, preocupado com a essência das coisas. Dessa essência fazia parte também a imaginação. Preto e branco é, para muitos, a cor dos sonhos. Talvez por isso, Octávio Paz tenha terminado o belíssimo poema «Cara al tiempo», dedicado a Manuel Alvarez Bravo, com o verso «La realidad es más real en blanco y negro».
Com a emergência da cor, muitos fotógrafos passaram a viver uma vida dupla, verdadeiramente esquizofrénica. Para sobreviver, faziam trabalho comercial a cor, reservando o preto e branco para o seu trabalho pessoal. Mais significativo, quiçá mais artístico. Às vezes, arriscavam, mas a experiência ficava na gaveta. Durante a Grande Depressão dos anos 30/40, muitos fotógrafos da Farm Security Administration e, mais tarde, do Office of War Information – Russell Lee, Arthur Rothstein, Jack Delano, Marion Post Wolcott, etc. – fotografaram a preto e branco mas também a cor, usando o novo filme da Kodachrome. No entanto, a nossa imagem dessa época de bancarrota, seca, fome e migrações é monocromática, como luto carregado ou aliviado. Nenhuma das fotografias a cores foi usada ou distribuída pelas agências governamentais. A cor pertencia ao futuro. Em tempos de carência e guerra, a cor era uma riqueza que decência obrigava a esconder. Octávio Paz tinha razão: a realidade é mais real a preto e branco. Esse acervo de uma América desconhecida só recentemente viu a luz do dia, com a publicação de Bound for Glory – América in Color 1939-43 (Colecção FSA/OWI da Library of Congress, 2004.)
A cor da FSA é cor de informação, mais do que de decoração. É a cor do algodão e dos tecidos de chita, antes da invasão do poliéster e das fibras sintéticas; a cor das tintas de esmalte e dos pigmentos estáveis, antes das acrílicas. (Sabe-se o que as tintas acrílicas fizeram à pintura dos anos 50/60 – a fotoquímica deu cabo dela). Na fotografia, até meados do século XX, a cor era usada naturalisticamente e por isso hoje olhamos para ela como arte. Mas, a pouco e pouco, o fotógrafo começou a controlar a tecnologia a cor, e a imprimir a sua marca pessoa à gama de tonalidades. Por sorte do acaso, os primeiros processos (caso do «dye – transfer») eram quimicamente estáveis (embora caros). Artistas como Evelyn Hofer (n. 1922) tornaram-se imediatamente identificáveis pelo espectro cromático que favoreciam. Mas seriam estas imagens arte, como as dos clássicos íconos a preto e branco de Ansel Adams, Bill Brandt ou Cartier-Bresson?
O ponto de viragem foi a exposição «William Eggleston’s Guide», no MoMA de Nova Iorque (o primeiro museu a coleccionar e a criar um departamento de fotografia). As cores saturadas e a banalidade dos assuntos das «dye-transfers» de Eggleston criaram um escândalo e uma sensação. Quem esqueceu aquele duche verde de Memphis, c. 1972, ou o berrante teto vermelho de Greenwood, Mississipi, 1973, com a lâmpada nua no centro da teia de fios? (Curiosamente, esta última viria a te o contra ponto em Washington, D.C., 1990, o estudo imaculado de uma ventoinha branca num teto branco.) A capa do catálogo (hoje uma preciosidade bibliográfica), com o retrato de um simples triciclo, foi outra pedrada contra o já visto e apreciado.
A partir daqui, os fotógrafos saíram do armário. Em 1977, Harry Callahan (1912-1999), figura cimeira do Institute of Design de Chicago e da Rhode Island School of Design, muito respeitado pela sua fotografia a preto e branco, anunciou que já só fotografava a cor. Dois anos depois, em Tucson, apresentava o seu trabalho (inédito) de mais de três décadas a cor, (H C: Photographs in Color / The Years 1946-1978). Já não se podia dizer, como Walker Evans tinha um dia declarado, que «color photography is vulgar».
A fotografia, a imagem única, não morre; transforma-se. Acossado, o preto e branco resiste e sublinha a realidade com o itálico do cinzento ou o negro corajoso do «bold». Entretanto, a técnica digital vai subvertendo os métodos tradicionais, dispensando o filme e o suporte. Mas a fotografia continua, porque onde há electrões em acção, há química a funcionar. Tal como os seus colegas do preto e branco, os praticantes da clássica fotografia a cor terão de recomeçar, como os pioneiros, a fabricar os papéis e a preparar os pigmentos. A fotografia, que é uma ciência, tornar-se-á finalmente uma arte.
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Jorge Calado in Actual, Expresso 9 de Abril de 2005


William Eggleston, «Greenwood, Mississipi, 1973»

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