segunda-feira, fevereiro 12, 2007

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Cinema e Fotografia. “Lisboa, Cidade Triste e Alegre”

de Vitor Palla e Costa Martins.

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"Mas se há filmes fotográficos, há livros de fotografias que são cinematográficos. “Lisboa, cidade triste e alegre” de Vitor Palla e Costa Martins é um exemplo"

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Se Murnau utilizou o que a fotografia moderna revelara, Costa Martins (1922-1996) e Vitor Palla (1922-2005) no seu livro “Lisboa, cidade triste e alegre” de 1959, utilizaram, mesmo sem “nenhum intuito imitativo” o que o moderno neo-realismo italiano revelara.



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António Sena no cartaz/catálogo que acompanhou a exposição de fotografias de Costa Martins e Palla, Lisboa e Tejo e Tudo, na galeria ether/vale tudo menos tirar olhos em Abril de 1982, escreve o seguinte: “Além das eventuais e pessoais opiniões sobre o livro três características são de notar: 1º é um livro que foi feito graças ao adiantamento de parte dos seus custos por colaboração dos seus futuros leitores, 2º um índice criativo onde se mistura a informação técnica e estética à observação pessoal e histórica e 3º uma obra colectiva onde não se sabe quem fez esta ou aquela fotografia contrariando a tendência autoritária de todas as histórias – a assinatura. Poderemos acusá-lo de ser um livro pouco fotográfico, de, fotográficamente, ser um livro mais gráfico (pela impressão) ou cinematográfico (pela paginação), quer dizer, um livro do antes e depois da fotografia”.


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Costa Martins e Vitor Palla, nesse fascinante índice, revelam-nos que a metodologia do livro é a do cinema de Flaherty. “Páginas 68 e 69: (...) O nosso método foi inconscientemente muito semelhante ao de Robert Flaherty, que coligia material para cada um dos seus filmes sem grandes pré-concepções, e que, ao contrário do cineasta vulgar, que pensa primeiro e filma depois, “filmava primeiro e depois pensava”. (...) Era com o material que colhia dia a dia que Flaherty construia finalmente os seus filmes. A montagem torna-se assim como que o substituto duma pré-planificação”. O que Felini diz sobre a montagem aplica-se ao livro escrevem os autores. (...)”A montagem, diz Felini, é um dos aspectos mais emocionantes do fazer filmes. Nada há mais excitante do que ver uma fita começar a respirar; é como ver crescer um filho nosso. O ritmo pode ainda não estar bem estabelecido, a sequência inteiramente definida. Mas nunca filmo uma cena segunda vez. Acredito que uma boa fita tem de ter defeitos. Tem de ter erros, como a vida, como as pessoas. (...) Uma mulher bonita só é atraente se não for perfeita. O mais importante é conseguir que o filme se torne uma coisa viva”.


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Os temas do livro, crianças, velhos, gatos, os pares de namorados, as mulheres, o tejo e as varinas, feiras e romarias, o mundo da noite, são típicamente fotográficas de tão pitorescas. O livro, e aí reside a sua criatividade não cai no pitoresco.



Olhem para o livro, e sigam como os autores passam do tema das varinas para a Baixa lisboeta:



“Página 96: Última fotografia do rio. O altivo olhar da mulher da esquerda conduz o nosso para o próximo tema. É bem claro que a metade esquerda desta cena pertence à sequência anterior, e a direita à seguinte: vamos sair dum cais onde os homens e as mulheres não se vestem de maneira muito diferente da de há cinquenta anos, cem anos, para entrar numa Baixa feita de contrastes superficiais mas em que as coisas também não se transformaram, afinal de contas, muito considerávelmente”.


E vou mostrar o cais onde os homens e mulheres não se vestem de maneira muito diferente...



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Só nós e algum vadio te queremos,

meu rio Tejo antigo e sempre novo.

E, contudo, és vértebras de um povo.

Armindo Rodrigues, DEZ ODES AO TEJO



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Páginas 94 e 95: O que aproximou estas duas imagens foi o excerto de Armindo Rodrigues.(...)



E o entrar na Baixa...



Páginas 98 e 101: Eis-nos em plena Baixa. (...)


E as duplas páginas do livro funcionam como “a tentação do cinema insatisfeita com a alternativa da paginação” como nos diz Sena no referido catálogo.



“Páginas 31 e 32: Não brademos imediatamente: “a lente anamórfica! O close-up!” para arrumar como cinematográfico o partido desta dupla página. Muito antes do écran extra-largo, já o aparelho fotográfico era giratório e registava imagens que ultrapassavam o ângulo de 180ª...”

E o nosso olhar movimenta-se da fotografia panorâmica tirada no jardim do Telhal, em que o par de namorados difícilmente se vê, para o close-up do casal de mãos entrelaçadas que olha para a montra.

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Por fim, é a relação directa com o cinema:



"Página 144 e 145: Se na conversa do café do Bairro Alto havia luz suficiente para um instantâneo de 1/10 af.3.5, no cabaret houve de usar-se 1/5, e fazer uma revelação prolongada de cerca do dobro do tempo(...)."


Mas não é só com a alternativa da paginação que o livro é cinematográfico.
Ainda citando os autores “ Felini (que diz de resto: “para mim , neo-realismo é uma maneira de ver a realidade sem preconceitos, sem a interferência de conveções – parar pura e simplesmente em frente da realidade sem ideias preconcebidas”)”.



Costa Martins e Palla pararam simplesmente em frente a estas realidades:





“Página 25: (...) Os namorados voltavam à noite da praia e esperavam o eléctrico em Martim Moniz, sózinhos numa bicha de dezenas de pessoas”.



Página 35: Pela “alta ruazinha”, entramos nos velhos bairros de Lisboa”




Páginas 40 e 41: Nenhum intuito imitativo aqui tampouco, ou influência sofrida conscientemente. Mas todos os que vêem estas fotografias (mais sublinhadamente a da direita) nos apontam a semelhança do seu clima e atributos físicos com os dum cinema a que os italianos deram a expressão mais completa. Não nos parece que dessa semelhança de resultados venha algum dano: ele é natural, dados os parentescos circunstanciais; além disso, estamos em querer que só pode haver vantagens na inter-influência das artes do nosso tempo, que têm muito que aprender umas com as outras”.
Paradoxalmente, quando se fala tanto em pluridisciplinaridade das artes, hoje, a história do cinema e da fotografia estão cada vez mais afastadas. Não vinha mal ao mundo se os parentes se reconciliassem.
E para terminar vamos ouvir uma história que os autores quiseram contar:
“...deixem-nos contar-lhes uma história. Já que temos estado a falar de filmes, será uma história de cinema. Quando Carl Dreyer, em Paris, em 1928, acabou a montagem de “A Paixão de Joana d’Arc”, os gerentes da companhia cinematográfica resolveram exibir a cópia final, numa ante-primeira, perante um grupo de setenta a oitenta intelectuais, escolhidos especialmente para o efeito, e imparciais – escritores, sacerdotes, psicólogos, historiadores e directores de revistas de várias especialidades. O fim dessa exibição era descobrir cenas ou sequências capazes de criar dificuldades, levantar atritos ou faltar à verdade histórica, porque havia ainda tempo de fazer alterações antes de passar ao grande público. Para que ao menos no resultado houvesse método, Dreyer propôs que se dividissem os espectadores em vários grupos, e que as opiniões de cada um desses grupos fossem recolhidas e lidas em conjunto. Quando se fez uma longa lista das alterações propostas e cortes reputados indispensáveis, verificou-se que, a cumpri-la, nada restaria da fita. E, conclui Dreyer (que conta esta história em Film nº1), os directores da companhia já não podiam ter dúvidas: a fita tinha de ser exibida com a forma que eu lhe dera. Nós não fizemos o mesmo antes de organizar este livro na sua forma definitiva; mas em duas exposições públicas, em conversas particulares, as opiniões sobre cada fotografia divergiam tanto, que a história de Dreyer recordava constantemente.”
O livro na altura da sua publicação, 1959, não chegou a ser um escândalo, porque não teve repercussão nenhuma na sociedade da época. “As reacções de louvor públicas e publicadas foram mínimas, num panorama onde continuava a não haver uma cultura fotográfica” diz-nos António Sena. Uma quantidade apreciável dos fascículos que tinham sobrado do livro, consistindo em mais de metade da edição, e ainda por encadernar, estavam esquecidos na cozinha da Associação Portugal-Cuba. Encontrados por Sena, coube-nos, aos que estavamos ligados ao projecto ether, fazer a montagem do livro a partir dessa pilha poeirenta de fascículos, tarefa que me pareceu semelhante à montagem de um filme. Ainda hoje sei de memória toda a sequência do livro.
“Lisboa, cidade triste e alegre” foi posto à venda na Galeria, na altura da exposição, por 2.500 escudos, e demorou a esgotar.
Hoje o interesse pelo livro é enorme. Martin Parr e Gerry Badger no seu 1º volume The Photobook: A History, classificam “Lisboa, cidade triste e alegre” como um dos melhores do pós-guerra sobre cidades.
Mas será que o nosso panorama de cultura fotográfica mudou?

Madalena Lello, Lisboa 14 de Janeiro de 2007

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