Lançamento do livro / catálogo, concebido e realizado por Jorge Calado em homenagem a Gérard Castello-Lopes, apresentado por António Barreto no BES Arte & Finança.
Apresentação de António Barreto.
Aparições, de Gérard Castello-Lopes, por Jorge Calado
BES ART e Fundação Calouste Gulbenkian
Lisboa, 22 Novembro de 2011
Saudações.
Jorge Calado.
Emílio Rui Vilar e Ricardo Salgado,
Danièle Castello-Lopes e filhos
Gostava também de poder dizer “Gérard”,
É um dia grande para a fotografia. Depois desta belíssima exposição, temos agora o livro que a completa e lhe vai sobreviver anos. As fotografias de um dos nossos maiores, algumas delas inéditas apesar de terem mais de 50 anos, arrumadas, expostas e comentadas por um dos nossos grandes, Jorge Calado, constituem um luxo de que não nos deveremos esquecer. Estamos a viver um momento raro na história da nossa fotografia, podem crer.
Poderia repetir o que escrevi no dia da morte de Gérard Castello-Lopes: “É seguramente o mais interessante fotógrafo português do século XX. Um dos mais, pelo menos”. Só que, ao reler, me dei conta de um erro. Ou de uma redução injusta e involuntária. Qual o significado do termo português? Se estamos apenas a falar de uma nacionalidade, de uma terra de origem familiar ou de um poiso, ainda se aceita. Mesmo se Gérard, a seguir esses critérios à letra, não era realmente, ou não era apenas um português... Mas enfim, digamos que era um dos nossos. O problema é o da acepção exacta do termo “fotógrafo português”. Esse foi o meu erro.
Apesar de sinais de identidade evidentes em algumas das suas fotografias (as pedras da calçada, certas igrejas, a roupa a secar, as fachadas decadentes dos edifícios...), sinais detectados sobretudo por portugueses, pois claro, nada me fará dizer que Gérard é um fotógrafo representativo do que poderá ser a “fotografia portuguesa”, conceito aliás discutível, eventualmente horrendo. A boa fotografia, a melhor fotografia é sempre universal! Gérard fotografou, também, Portugal. Gérard fotografou, como poucos, Lisboa, a Lisboa de O’Neil e alguns restos da Lisboa de Pessoa. Mas também fotografou o mundo, Paris e França, em particular. Situa-se no plano dos maiores, sobretudo europeus, do seu tempo. Descoberto e redescoberto tardiamente, podemos colocá-lo ao lado dos grandes fotógrafos deste continente, em particular dos seus contemporâneos dos anos cinquenta e sessenta. Com esta ressalva, não me importo de dizer que Gérard Castello-Lopes é seguramente um dos mais importantes fotógrafos portugueses.
Esta apreciação leva-me logo a um ponto essencial que gostaria de sublinhar hoje. Por várias razões, de que Jorge Calado dá cabalmente conta na sua apresentação, Gérard foi pouco visto e conhecido no seu tempo. Só a partir dos anos oitenta, em primeiro lugar pela mão de António Sena e da sua galeria Ether (“Vale tudo menos tirar olhos”), começou a ser notado. Depois disso, Gérard ocupou um lugar que era o seu pelo mérito e pela sua excepcional qualidade e sensibilidade. Mas Castello-Lopes era um homem especial, era um amador, era tímido, não seguia escolas nem capelas, tinha uma distância aristocrática ao mundo da comunicação... Além disso, era reservado, com estranhos sentimentos diante da sua própria obra. Cuidadoso e meticuloso, não queria deixar que esta seguisse vida autónoma. Hoje, sabemos que deixou dezenas de milhares de negativos, muitos inéditos, num acervo que talvez nunca tenha sido estudado como deve ser. Pelo que Jorge Calado nos diz, esta exposição e este livro estão limitados no âmbito: apenas estão presentes as imagens que existiam em casa dele e da Danièle, em impressão positiva, prontas a mostrar. A conclusão é simples e salta aos olhos: há muito a fazer, a estudar e inventariar, a catalogar e documentar, a imprimir, a publicar e expor. Além de que, com impressões actuais de diversa escala e dimensão, como ele próprio veio a descobrir e intuir, podemos ter ainda mais novidades. Felizes os países que se podem orgulhar de ter, ainda por investigar, um acervo destes, com o valor e o interesse que lhe podemos atribuir. Gostava de acrescentar também: felizes os países que têm interessados, instituições, tempo, gosto e recursos para tal empreendimento!
É muito tentador dizer que Gérard Castello-Lopes não era homem deste século. Deste, do XXº. Que tem algo do Renascimento. Ou das Luzes. Pela cultura, pela erudição e pela sucessão de actividades. Foi economista, gestor, diplomata, escritor, ensaísta, crítico, cineasta, jazzman, desportista, mergulhador e... fotógrafo. É como fotógrafo que será recordado. Tudo o que fez foi com o espírito do amador, o rigor do cientista e a dedicação do profissional. É verdade que o podemos colocar facilmente naqueles séculos em que as ciências, as artes e as humanidades se frequentavam e estabeleciam uma boa vizinhança. É verdade, mas é fácil. Pensando duas vezes, olhando para esta exposição que Jorge Calado organizou com esmero e significado e folheando minuciosamente este maravilhoso livro, a conclusão é outra: Gérard Castello-Lopes não tem século. Nunca ficou preso ao seu tempo. Mas ficou fiel às suas imagens. Nesta exposição e neste livro, a aguda ironia do seu curador colocou, lado a lado, fotografias que distam de dezenas de anos entre si, mas sobre as quais se poderá dizer que o seu autor fez a mesma fotografia vezes e vezes sem conta ao longo dos tempos. Vejam-se as pessoas fotografadas de costas, a roupa a secar, os espelhos de água, o abatimento dos idosos, o estranho olhar sério de crianças e adolescentes... Apesar das rupturas e mau grado as suas várias vidas, há um fio condutor, há um olhar que se mantém.
Este olhar que se mantém, esta maneira de ver tão sua, não dispensa influências e parecenças. Passeiam-se nestas páginas Cartier-Bresson, sobretudo, mas também Doisneau, Alvarez Bravo, Brassaï, Eugene Smith e Kertész. Aqui e ali, um ar de Walker Evans ou de Weston. E as que poderemos chamar as suas “fotografias francesas” dos anos 50 e que poderiam ter sido feitas por alguns dos acima referidos. Todos passam por aqui, Gérard passou por todos. Como os grandes pintores e fotógrafos, para não dizer os artistas em geral, soube compor, tirar ideias e receber inspirações. Mas soube também fazer a sua síntese e o seu género, apurar a sua linguagem e traçar o seu caminho. Nunca pertenceu aos seus mestres, aos que o ensinaram, nem aos que o inspiraram: cresceu e morreu livre. Como quase sempre, a liberdade é também solidão. Nunca quis deixar-se fechar em escola ou estética. Bem podia, na sua fase dita humanista dos anos cinquenta e sessenta, deixar-se navegar pelas ondas neo-realistas que traziam conforto e alguma companhia. Podia limitar-se a seguir o mestre Cartier-Bresson. Não fez uma coisa nem outra. Navegou pelas margens. Preferiu a liberdade. Gostava de tocar várias músicas. Repito-me: ainda há muito para ver e estudar e talvez mostrar e publicar... Não é possível dizer hoje que sabemos tudo de Gérard Castello-Lopes.
Ao contrário do nosso Curador, creio que Gérard teve várias vidas de fotógrafo. Talvez um só Gérard, mas várias vidas. Mesmo se traços e fios as ligam. Aliás, o próprio Jorge Calado, no seu texto, reconhece que houve pelo menos um renascimento. Esta exposição, tal como foi magistralmente organizada, tem programa. Ou antes, tem uma ideia forte: mostrar a continuidade e a coerência. Mas deixa-nos a incerteza do que está para além do que se vê. Percebo a cortês delicadeza do Jorge, que apenas quis mostrar as provas que Gérard, lui même, aprovara em seu tempo. E aquelas que ele deixou impressas e prontas. Mas a obra fica para além da morte. E o seu tempo virá... Insisto em que Gérard teve várias vidas de fotógrafo. Com estas “Aparições”, inicia-se mais uma. E não a última.
Conhecemo-nos tardiamente. Ele, já com sessenta. Eu, não muito longe. Já ele tinha recomeçado a fotografar e mostrado algumas provas. As primeiras imagens que eu tinha visto formavam um magnífico portfolio alentejano no livro do José Cutileiro “A Portuguese Rural Society”, publicado em Oxford, no princípio dos anos setenta. Vi depois a exposição da Éther, que me deslumbrara e tinha, a seguir, visto o seu primeiro livro a sério, “Perto da vista”. Encontrámo-nos por causa de uma breve recensão que eu escrevera para o Diário de Notícias. Um dia, no meio da rua, um carro parou desabridamente e dele se extraiu um longo senhor que nunca mais acabava de sair. Era o Gérard. Entre a rua e o passeio, apresentou-se. Depois disso, conhecemo-nos um pouco melhor. Sem intimidade, conversámos o bastante para eu ficar com admiração e respeito. Em casas de amigos, falávamos de tudo. No Grémio Literário, a fotografia ocupava-nos. Foi ali que, um dia, depois de uma dura discussão sobre a questão moral na fotografia, lhe disse: “Ó Gérard, você é um grand timide!”. Levantou-se, abriu ligeiramente os braços e retorquiu, com o sorriso de quem é apanhado: “Mais bien sûr”!
Nesta altura, eu ainda não tinha decidido para mim se Gérard era um poseur ou um tímido. Ele teorizava sobre a sua dificuldade em fotografar pessoas. Eu hesitava em aceitar os seus argumentos ou encontrar neles uma espécie de justificação luxuosa para uma relativa abstenção e um grande distanciamento. A evidência da sua timidez revelou-se então. Várias outras pessoas terão chegado à mesma conclusão. A timidez era uma maneira de sentir as dificuldades do acto de fotografar. É verdade que existe uma questão moral. Uma questão de moral. Fotografar alguém é sempre um problema. Fotografar um desconhecido é um enorme problema. Maior problema ainda é a utilização dessas imagens. Vários termos nos ocorrem a este propósito. Intrusão... Violação de privacidade... Atentado à intimidade... Uso indevido da identidade de outrem... Num tempo em que a chamada sociedade de informação ou de comunicação empurra as fronteiras morais para limites inaceitáveis, é sempre bom recordar os velhos princípios. E senti-los, coisa que Gérard me pareceu fazer com sinceridade.
O pior é o momento em que se faz a fotografia. Gesto, aliás, que, em várias línguas, se chama “disparar”. Não é pouco, nem é pacífico. E também se diz, pelo menos em português, “tirar o retrato”. Sublinho o “tirar”... Hoje, far-se-ão muitas dezenas ou centenas de milhões de fotografias por dia. Até já os telefones tiram fotografias, nesta que é uma aliança entre dois velhos rivais, a palavra e a imagem. Parece o gesto mais banal do mundo. Parece, mas não é. A questão moral está sempre lá. Com que direito eu fixo imagens de outros, momentos vividos por outras pessoas e identidades alheias? Com que legitimidade posso eu utilizar a vida de outro? Ainda hoje estou convencido de que foi esta questão moral que reforçou a sua timidez.
Quando ele me tentou explicar as razões e o modo da sua “segunda vida”, o principal argumento utilizado para se redefinir foi o da “intrusão” ou mesmo o da “agressão”. Foi a esse propósito que ele cunhou uma frase inesquecível: aproximar-se de alguém com uma câmara fotográfica é como usar luvas de boxe para conversar! Por isso, os objectos, a luz, as formas, as composições gráficas e os elementos de paisagem apareciam, agora, com muito mais frequência do que as pessoas em planos aproximados dos primeiros anos. É uma timidez cruzada de delicadeza. Chama-se a isso fazer cerimónia. Gérard fazia.
Talvez seja esta consciência moral que faz com que, nestas fotografias, o drama esteja ausente. Como ausentes estão também o sofrimento, a violência e a tragédia. E até a pobreza inevitável dos anos sessenta portugueses nos aparece debaixo de uma relativa doçura. Gérard não era fotógrafo cortesão, nem queria vender optimismo. Mas evitava a dor nas fotografias. O que só se explica por razões morais. É esse um dos traços mais interessantes da sua obra. Renunciou ou simplesmente não recorreu aos elementos mais procurados pela fotografia, a começar pelo jornalismo e pela reportagem. Na verdade, o sofrimento, a violência, a dor, a pobreza e a guerra são fotogénicos! Infelizmente. Custa a dizer. Mas é verdade. Há uma estética do sofrimento vorazmente cultivada por muitos profissionais, por editores e por órgãos de informação. A ponto de, pelo hábito, ficarmos indiferentes ao sofrimento e de esquecermos, pela forma, o conteúdo. Quem se incomoda hoje com os ventres inchados das crianças africanas a morrer de fome e doença? Ou com os restos de corpos depois de explosão de uma mina? Ou com os efeitos iconográficos da tortura, da violação, da droga, do crime, da miséria e da doença? À força de ver, ficamos indiferentes.
Gérard não foi atraído pelo sofrimento dos outros. Pela sua moral e porque nunca foi um fotógrafo engagé. Ou empenhado. Ou comprometido. Apesar do seu tempo, próprio a esse género. Mau grado não ter gostado do que viu, em França ou em Portugal, com a guerra, a devastação e as ditaduras. Não advogou causas com a sua fotografia, a não ser a da condição humana na sua forma mais poética. Fez melhor do que fotografia de combate ou fotografia com programa. Por isso as suas imagens duram mais do que as efémeras com intenção. Interessava-se pelo quotidiano e promovia o banal e o incidental a raridade.
Gérard foi um génio da encenação. Da encenação intuitiva. Da encenação natural, isto é, da colocação, em imagem, do que o mundo lhe dava, mas aproveitando sempre a ideia de encenação, de ligação especial entre os figurantes, de relação significativa entre estes e o meio ou a paisagem. As suas personagens na paisagem são pequenas obras de arte. Poderiam ter sido imaginadas previamente. Poderiam ter sido manipuladas ou combinadas, de tal modo elas nos parecem rigorosas e minuciosas. Mas creio que Gérard nunca o fez. Ele soube captar, não construiu ou não procedeu a montagem.
A discussão sobre a escala (a dimensão absoluta e relativa das suas imagens) foi a sua última e principal contribuição para a teoria da fotografia. Tive a sorte de assistir, no Porto, à sua catedrática conferência sobre o tema. Ali relembrou a novidade da grande dimensão de fotografias que nos habituámos a ver em pequeno formato. A diferença de escala pode ser a metamorfose do sentido. Aludiu à mudança de género e de natureza que se opera quando uma fotografia que se manuseia, que se vê com as mãos, se transforma num fresco que se observa e admira. Referiu-se à enorme humanidade de um olhar num rosto grande como uma parede. Ali percebi que todas as escalas são boas, não há leis nem dogmas. Todas as escalas são boas, desde que adequadas à imagem, ao local, à manifestação, às circunstâncias! A mesma fotografia pode ter várias vidas e vários sentidos conforme as circunstâncias.
Em certo sentido, esta reflexão leva-nos à questão da liberdade de criação. E da imaginação. O Gérard foi uma das duas pessoas que me ajudou a olhar para a fotografia com mais liberdade e menos fanatismo. Formatar as dimensões? Alterar o enquadramento? Imprimir de várias maneiras? Manipular a impressão? Recentrar? Recorrer ao digital? Eis pecados que, desde que com honestidade, deixaram de o ser. Em parte, graças a ele, quando me disse que as impressões ulteriores eram geralmente muito mais interessantes do que os famosos vintages. Comecei a perceber então que o dogma é coisa de fanáticos. Caminhei do mais estrito conservadorismo para uma atrevida liberdade... Mas não deixo de encontrar, nesses mesmos vintages, um encanto e uma curiosidade que constituem, em si, um valor.
Nesta exposição e neste livro, Jorge Calado escolheu, em maioria, vintages no formato em que Gérard os deixou. Foi uma opção assumida, tem as suas razões de ser. Porque é póstuma. Porque é a maior que jamais se fez. Porque tem muitas imagens inéditas. Porque o esforço de investigação de tudo o resto está ainda por fazer, mesmo se, ao que parece, Danièle já terá feito um apurado trabalho de ordenamento. E até porque já tivemos várias oportunidades de ver algumas destas imagens em tiragens contemporâneas e nunca tínhamos visto os vintages. O importante é considerar que todas podem ser autênticas, provas de época ou contemporâneas, vintages ou tiragens ulteriores. Podem ter valores de mercado diferentes, mas isso não altera o valor intrínseco, nem a qualidade, muito menos a autenticidade.
Já que falo do trabalho de Jorge Calado. Este é um dos homens que mais admiro em Portugal. Pela sua cultura e pela sua erudição. Pelo seu contributo para a nossa felicidade. E pela sua simpatia pessoal. Este ano foi, para ele, de monumental esforço. Para nós, de encanto espiritual. Antes deste livro, tivemos o “Haja Luz – Uma História da Química Através de Tudo”, maravilhosa enciclopédia intelectual, artística e científica. Agora, um dos mais belos livros de fotografia jamais publicados. Garanto-vos que é obra, publicar os dois no mesmo ano! Obrigado Jorge!
António Barreto, Lisboa 22 de Novembro de 2011
(texto proferido durante o lançamento do livro / catálogo)
BES ART e Fundação Calouste Gulbenkian
Lisboa, 22 Novembro de 2011
Saudações.
Jorge Calado.
Emílio Rui Vilar e Ricardo Salgado,
Danièle Castello-Lopes e filhos
Gostava também de poder dizer “Gérard”,
É um dia grande para a fotografia. Depois desta belíssima exposição, temos agora o livro que a completa e lhe vai sobreviver anos. As fotografias de um dos nossos maiores, algumas delas inéditas apesar de terem mais de 50 anos, arrumadas, expostas e comentadas por um dos nossos grandes, Jorge Calado, constituem um luxo de que não nos deveremos esquecer. Estamos a viver um momento raro na história da nossa fotografia, podem crer.
Poderia repetir o que escrevi no dia da morte de Gérard Castello-Lopes: “É seguramente o mais interessante fotógrafo português do século XX. Um dos mais, pelo menos”. Só que, ao reler, me dei conta de um erro. Ou de uma redução injusta e involuntária. Qual o significado do termo português? Se estamos apenas a falar de uma nacionalidade, de uma terra de origem familiar ou de um poiso, ainda se aceita. Mesmo se Gérard, a seguir esses critérios à letra, não era realmente, ou não era apenas um português... Mas enfim, digamos que era um dos nossos. O problema é o da acepção exacta do termo “fotógrafo português”. Esse foi o meu erro.
Apesar de sinais de identidade evidentes em algumas das suas fotografias (as pedras da calçada, certas igrejas, a roupa a secar, as fachadas decadentes dos edifícios...), sinais detectados sobretudo por portugueses, pois claro, nada me fará dizer que Gérard é um fotógrafo representativo do que poderá ser a “fotografia portuguesa”, conceito aliás discutível, eventualmente horrendo. A boa fotografia, a melhor fotografia é sempre universal! Gérard fotografou, também, Portugal. Gérard fotografou, como poucos, Lisboa, a Lisboa de O’Neil e alguns restos da Lisboa de Pessoa. Mas também fotografou o mundo, Paris e França, em particular. Situa-se no plano dos maiores, sobretudo europeus, do seu tempo. Descoberto e redescoberto tardiamente, podemos colocá-lo ao lado dos grandes fotógrafos deste continente, em particular dos seus contemporâneos dos anos cinquenta e sessenta. Com esta ressalva, não me importo de dizer que Gérard Castello-Lopes é seguramente um dos mais importantes fotógrafos portugueses.
Esta apreciação leva-me logo a um ponto essencial que gostaria de sublinhar hoje. Por várias razões, de que Jorge Calado dá cabalmente conta na sua apresentação, Gérard foi pouco visto e conhecido no seu tempo. Só a partir dos anos oitenta, em primeiro lugar pela mão de António Sena e da sua galeria Ether (“Vale tudo menos tirar olhos”), começou a ser notado. Depois disso, Gérard ocupou um lugar que era o seu pelo mérito e pela sua excepcional qualidade e sensibilidade. Mas Castello-Lopes era um homem especial, era um amador, era tímido, não seguia escolas nem capelas, tinha uma distância aristocrática ao mundo da comunicação... Além disso, era reservado, com estranhos sentimentos diante da sua própria obra. Cuidadoso e meticuloso, não queria deixar que esta seguisse vida autónoma. Hoje, sabemos que deixou dezenas de milhares de negativos, muitos inéditos, num acervo que talvez nunca tenha sido estudado como deve ser. Pelo que Jorge Calado nos diz, esta exposição e este livro estão limitados no âmbito: apenas estão presentes as imagens que existiam em casa dele e da Danièle, em impressão positiva, prontas a mostrar. A conclusão é simples e salta aos olhos: há muito a fazer, a estudar e inventariar, a catalogar e documentar, a imprimir, a publicar e expor. Além de que, com impressões actuais de diversa escala e dimensão, como ele próprio veio a descobrir e intuir, podemos ter ainda mais novidades. Felizes os países que se podem orgulhar de ter, ainda por investigar, um acervo destes, com o valor e o interesse que lhe podemos atribuir. Gostava de acrescentar também: felizes os países que têm interessados, instituições, tempo, gosto e recursos para tal empreendimento!
É muito tentador dizer que Gérard Castello-Lopes não era homem deste século. Deste, do XXº. Que tem algo do Renascimento. Ou das Luzes. Pela cultura, pela erudição e pela sucessão de actividades. Foi economista, gestor, diplomata, escritor, ensaísta, crítico, cineasta, jazzman, desportista, mergulhador e... fotógrafo. É como fotógrafo que será recordado. Tudo o que fez foi com o espírito do amador, o rigor do cientista e a dedicação do profissional. É verdade que o podemos colocar facilmente naqueles séculos em que as ciências, as artes e as humanidades se frequentavam e estabeleciam uma boa vizinhança. É verdade, mas é fácil. Pensando duas vezes, olhando para esta exposição que Jorge Calado organizou com esmero e significado e folheando minuciosamente este maravilhoso livro, a conclusão é outra: Gérard Castello-Lopes não tem século. Nunca ficou preso ao seu tempo. Mas ficou fiel às suas imagens. Nesta exposição e neste livro, a aguda ironia do seu curador colocou, lado a lado, fotografias que distam de dezenas de anos entre si, mas sobre as quais se poderá dizer que o seu autor fez a mesma fotografia vezes e vezes sem conta ao longo dos tempos. Vejam-se as pessoas fotografadas de costas, a roupa a secar, os espelhos de água, o abatimento dos idosos, o estranho olhar sério de crianças e adolescentes... Apesar das rupturas e mau grado as suas várias vidas, há um fio condutor, há um olhar que se mantém.
Este olhar que se mantém, esta maneira de ver tão sua, não dispensa influências e parecenças. Passeiam-se nestas páginas Cartier-Bresson, sobretudo, mas também Doisneau, Alvarez Bravo, Brassaï, Eugene Smith e Kertész. Aqui e ali, um ar de Walker Evans ou de Weston. E as que poderemos chamar as suas “fotografias francesas” dos anos 50 e que poderiam ter sido feitas por alguns dos acima referidos. Todos passam por aqui, Gérard passou por todos. Como os grandes pintores e fotógrafos, para não dizer os artistas em geral, soube compor, tirar ideias e receber inspirações. Mas soube também fazer a sua síntese e o seu género, apurar a sua linguagem e traçar o seu caminho. Nunca pertenceu aos seus mestres, aos que o ensinaram, nem aos que o inspiraram: cresceu e morreu livre. Como quase sempre, a liberdade é também solidão. Nunca quis deixar-se fechar em escola ou estética. Bem podia, na sua fase dita humanista dos anos cinquenta e sessenta, deixar-se navegar pelas ondas neo-realistas que traziam conforto e alguma companhia. Podia limitar-se a seguir o mestre Cartier-Bresson. Não fez uma coisa nem outra. Navegou pelas margens. Preferiu a liberdade. Gostava de tocar várias músicas. Repito-me: ainda há muito para ver e estudar e talvez mostrar e publicar... Não é possível dizer hoje que sabemos tudo de Gérard Castello-Lopes.
Ao contrário do nosso Curador, creio que Gérard teve várias vidas de fotógrafo. Talvez um só Gérard, mas várias vidas. Mesmo se traços e fios as ligam. Aliás, o próprio Jorge Calado, no seu texto, reconhece que houve pelo menos um renascimento. Esta exposição, tal como foi magistralmente organizada, tem programa. Ou antes, tem uma ideia forte: mostrar a continuidade e a coerência. Mas deixa-nos a incerteza do que está para além do que se vê. Percebo a cortês delicadeza do Jorge, que apenas quis mostrar as provas que Gérard, lui même, aprovara em seu tempo. E aquelas que ele deixou impressas e prontas. Mas a obra fica para além da morte. E o seu tempo virá... Insisto em que Gérard teve várias vidas de fotógrafo. Com estas “Aparições”, inicia-se mais uma. E não a última.
Conhecemo-nos tardiamente. Ele, já com sessenta. Eu, não muito longe. Já ele tinha recomeçado a fotografar e mostrado algumas provas. As primeiras imagens que eu tinha visto formavam um magnífico portfolio alentejano no livro do José Cutileiro “A Portuguese Rural Society”, publicado em Oxford, no princípio dos anos setenta. Vi depois a exposição da Éther, que me deslumbrara e tinha, a seguir, visto o seu primeiro livro a sério, “Perto da vista”. Encontrámo-nos por causa de uma breve recensão que eu escrevera para o Diário de Notícias. Um dia, no meio da rua, um carro parou desabridamente e dele se extraiu um longo senhor que nunca mais acabava de sair. Era o Gérard. Entre a rua e o passeio, apresentou-se. Depois disso, conhecemo-nos um pouco melhor. Sem intimidade, conversámos o bastante para eu ficar com admiração e respeito. Em casas de amigos, falávamos de tudo. No Grémio Literário, a fotografia ocupava-nos. Foi ali que, um dia, depois de uma dura discussão sobre a questão moral na fotografia, lhe disse: “Ó Gérard, você é um grand timide!”. Levantou-se, abriu ligeiramente os braços e retorquiu, com o sorriso de quem é apanhado: “Mais bien sûr”!
Nesta altura, eu ainda não tinha decidido para mim se Gérard era um poseur ou um tímido. Ele teorizava sobre a sua dificuldade em fotografar pessoas. Eu hesitava em aceitar os seus argumentos ou encontrar neles uma espécie de justificação luxuosa para uma relativa abstenção e um grande distanciamento. A evidência da sua timidez revelou-se então. Várias outras pessoas terão chegado à mesma conclusão. A timidez era uma maneira de sentir as dificuldades do acto de fotografar. É verdade que existe uma questão moral. Uma questão de moral. Fotografar alguém é sempre um problema. Fotografar um desconhecido é um enorme problema. Maior problema ainda é a utilização dessas imagens. Vários termos nos ocorrem a este propósito. Intrusão... Violação de privacidade... Atentado à intimidade... Uso indevido da identidade de outrem... Num tempo em que a chamada sociedade de informação ou de comunicação empurra as fronteiras morais para limites inaceitáveis, é sempre bom recordar os velhos princípios. E senti-los, coisa que Gérard me pareceu fazer com sinceridade.
O pior é o momento em que se faz a fotografia. Gesto, aliás, que, em várias línguas, se chama “disparar”. Não é pouco, nem é pacífico. E também se diz, pelo menos em português, “tirar o retrato”. Sublinho o “tirar”... Hoje, far-se-ão muitas dezenas ou centenas de milhões de fotografias por dia. Até já os telefones tiram fotografias, nesta que é uma aliança entre dois velhos rivais, a palavra e a imagem. Parece o gesto mais banal do mundo. Parece, mas não é. A questão moral está sempre lá. Com que direito eu fixo imagens de outros, momentos vividos por outras pessoas e identidades alheias? Com que legitimidade posso eu utilizar a vida de outro? Ainda hoje estou convencido de que foi esta questão moral que reforçou a sua timidez.
Quando ele me tentou explicar as razões e o modo da sua “segunda vida”, o principal argumento utilizado para se redefinir foi o da “intrusão” ou mesmo o da “agressão”. Foi a esse propósito que ele cunhou uma frase inesquecível: aproximar-se de alguém com uma câmara fotográfica é como usar luvas de boxe para conversar! Por isso, os objectos, a luz, as formas, as composições gráficas e os elementos de paisagem apareciam, agora, com muito mais frequência do que as pessoas em planos aproximados dos primeiros anos. É uma timidez cruzada de delicadeza. Chama-se a isso fazer cerimónia. Gérard fazia.
Talvez seja esta consciência moral que faz com que, nestas fotografias, o drama esteja ausente. Como ausentes estão também o sofrimento, a violência e a tragédia. E até a pobreza inevitável dos anos sessenta portugueses nos aparece debaixo de uma relativa doçura. Gérard não era fotógrafo cortesão, nem queria vender optimismo. Mas evitava a dor nas fotografias. O que só se explica por razões morais. É esse um dos traços mais interessantes da sua obra. Renunciou ou simplesmente não recorreu aos elementos mais procurados pela fotografia, a começar pelo jornalismo e pela reportagem. Na verdade, o sofrimento, a violência, a dor, a pobreza e a guerra são fotogénicos! Infelizmente. Custa a dizer. Mas é verdade. Há uma estética do sofrimento vorazmente cultivada por muitos profissionais, por editores e por órgãos de informação. A ponto de, pelo hábito, ficarmos indiferentes ao sofrimento e de esquecermos, pela forma, o conteúdo. Quem se incomoda hoje com os ventres inchados das crianças africanas a morrer de fome e doença? Ou com os restos de corpos depois de explosão de uma mina? Ou com os efeitos iconográficos da tortura, da violação, da droga, do crime, da miséria e da doença? À força de ver, ficamos indiferentes.
Gérard não foi atraído pelo sofrimento dos outros. Pela sua moral e porque nunca foi um fotógrafo engagé. Ou empenhado. Ou comprometido. Apesar do seu tempo, próprio a esse género. Mau grado não ter gostado do que viu, em França ou em Portugal, com a guerra, a devastação e as ditaduras. Não advogou causas com a sua fotografia, a não ser a da condição humana na sua forma mais poética. Fez melhor do que fotografia de combate ou fotografia com programa. Por isso as suas imagens duram mais do que as efémeras com intenção. Interessava-se pelo quotidiano e promovia o banal e o incidental a raridade.
Gérard foi um génio da encenação. Da encenação intuitiva. Da encenação natural, isto é, da colocação, em imagem, do que o mundo lhe dava, mas aproveitando sempre a ideia de encenação, de ligação especial entre os figurantes, de relação significativa entre estes e o meio ou a paisagem. As suas personagens na paisagem são pequenas obras de arte. Poderiam ter sido imaginadas previamente. Poderiam ter sido manipuladas ou combinadas, de tal modo elas nos parecem rigorosas e minuciosas. Mas creio que Gérard nunca o fez. Ele soube captar, não construiu ou não procedeu a montagem.
A discussão sobre a escala (a dimensão absoluta e relativa das suas imagens) foi a sua última e principal contribuição para a teoria da fotografia. Tive a sorte de assistir, no Porto, à sua catedrática conferência sobre o tema. Ali relembrou a novidade da grande dimensão de fotografias que nos habituámos a ver em pequeno formato. A diferença de escala pode ser a metamorfose do sentido. Aludiu à mudança de género e de natureza que se opera quando uma fotografia que se manuseia, que se vê com as mãos, se transforma num fresco que se observa e admira. Referiu-se à enorme humanidade de um olhar num rosto grande como uma parede. Ali percebi que todas as escalas são boas, não há leis nem dogmas. Todas as escalas são boas, desde que adequadas à imagem, ao local, à manifestação, às circunstâncias! A mesma fotografia pode ter várias vidas e vários sentidos conforme as circunstâncias.
Em certo sentido, esta reflexão leva-nos à questão da liberdade de criação. E da imaginação. O Gérard foi uma das duas pessoas que me ajudou a olhar para a fotografia com mais liberdade e menos fanatismo. Formatar as dimensões? Alterar o enquadramento? Imprimir de várias maneiras? Manipular a impressão? Recentrar? Recorrer ao digital? Eis pecados que, desde que com honestidade, deixaram de o ser. Em parte, graças a ele, quando me disse que as impressões ulteriores eram geralmente muito mais interessantes do que os famosos vintages. Comecei a perceber então que o dogma é coisa de fanáticos. Caminhei do mais estrito conservadorismo para uma atrevida liberdade... Mas não deixo de encontrar, nesses mesmos vintages, um encanto e uma curiosidade que constituem, em si, um valor.
Nesta exposição e neste livro, Jorge Calado escolheu, em maioria, vintages no formato em que Gérard os deixou. Foi uma opção assumida, tem as suas razões de ser. Porque é póstuma. Porque é a maior que jamais se fez. Porque tem muitas imagens inéditas. Porque o esforço de investigação de tudo o resto está ainda por fazer, mesmo se, ao que parece, Danièle já terá feito um apurado trabalho de ordenamento. E até porque já tivemos várias oportunidades de ver algumas destas imagens em tiragens contemporâneas e nunca tínhamos visto os vintages. O importante é considerar que todas podem ser autênticas, provas de época ou contemporâneas, vintages ou tiragens ulteriores. Podem ter valores de mercado diferentes, mas isso não altera o valor intrínseco, nem a qualidade, muito menos a autenticidade.
Já que falo do trabalho de Jorge Calado. Este é um dos homens que mais admiro em Portugal. Pela sua cultura e pela sua erudição. Pelo seu contributo para a nossa felicidade. E pela sua simpatia pessoal. Este ano foi, para ele, de monumental esforço. Para nós, de encanto espiritual. Antes deste livro, tivemos o “Haja Luz – Uma História da Química Através de Tudo”, maravilhosa enciclopédia intelectual, artística e científica. Agora, um dos mais belos livros de fotografia jamais publicados. Garanto-vos que é obra, publicar os dois no mesmo ano! Obrigado Jorge!
António Barreto, Lisboa 22 de Novembro de 2011
(texto proferido durante o lançamento do livro / catálogo)
António Barreto.
Intervenção de Ricardo Salgado, em representação do Banco Espirito Santo.
Intervenção de Rui Vilar, em representação da Fundação Calouste Gulbenkian.
Intervenção de Jorge Calado.
Intervenção de Danièle Castello-Lopes.
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