domingo, janeiro 28, 2007


.
Histórias de Fotografias 1 .
.
.
..........Tenho, na minha colecção, algumas fotografias “misteriosas”. Por uma qualquer razão fácil de imaginar. Pelos autores, pelos objectos, pela data ou por outro motivo estranho. São imagens que não se deixam identificar, que não revelam as suas origens, ou que escondem o propósito de quem as fez. De vez em quando, como acontece a outros coleccionadores, abre-se uma porta. Após longas investigações ou por mero acaso, de repente, como num laboratório após um banho de revelador, as imagens oferecem algo. Ou tudo. Uma informação num jornal, uma fotografia idêntica mas documentada, uma história lida em livro ou memórias, qualquer pista pode ajudar a desvendar o mistério. Entre as fotografias que cabe nesta categoria de “misteriosas”, conto estas duas que adquiri, sem grande entusiasmo, há mais de vinte anos. Se bem me lembro, foi na Livraria Histórica e Ultramarina, do José Maria da Silva, “O Almarjão”, na Travessa da Queimada, ao Bairro Alto. Uma delas é uma cena de aldeia ou de quinta. Um terreiro, casa de quinta, edifícios de armazéns ou lagares, alfaias várias, umas pipas e algumas pessoas. São cerca de trinta pessoas, das quais três ou quatro mulheres e talvez dois ou três jovens ou adolescentes. Dois ou três homens de “condição superior”, talvez patrões, proprietários ou comerciantes. Os restantes parecem todos trabalhadores. Alguns dos figurantes, sobretudo os mais “bem vestidos”, olham directamente para a câmara, posam. Outros parecem estar a fazer o que devem fazer, trabalhar, mas mostram uma estranha pose estática. Na verdade, estão rígidos, em diversas posições, espalhados pela cena. Ao centro, em segundo plano, alguns estão sentados no chão, perto do que parece ser uma eira com caroças ou espigas de milho. A casa pode ser portuguesa, mais do Norte do que do Sul. Podia ser no Douro, nas Beiras, eventualmente Estremadura. A presença de pipas sugere evidentemente uma região vinícola. As paredes podem ser de xisto, não tenho a certeza. Mas as escadas de entrada da casa principal, à esquerda ao fundo, são talvez de granito trabalhado em redondo. Mais estranho, e aqui começa o mistério, é que esta imagem tinha uma companhia. A segunda fotografia é exactamente do mesmo sítio, o ângulo de tomada de vista é praticamente o mesmo (o fotógrafo deve ter-se deslocado uns centímetros à direita, a supor que esta foi feita depois da outra...), a fotografia foi feita quase à mesma hora (o que se vê pelas sombras nas paredes e no chão). Há pequenas diferenças entre as duas, nomeadamente uma pipa que não está na mesma posição, o mesmo se podendo dizer de uma caixa e de um ou outro artefacto. Mas surge um objecto realmente estranho, que apenas se tinha apercebido na primeira: parece ser um equipamento fotográfico, montado sobre tripé (poderia ser uma câmara escura de mudança de chapas). Mas a maior diferença salta aos olhos: na segunda fotografia, não há uma única pessoa. É este o mistério. O que terá estado na origem destas imagens? Por que razão alguém quis fotografar um terreiro de quinta, destas duas maneiras: uma com pessoas, outra totalmente deserta? O que se queria mostrar? Por si só, cada fotografia é uma imagem simples, uma ilustração, uma recordação ou um testemunho. Não há nada de muito especial, uma família, uma comemoração ou uma operação agrícola. Não é uma casa muito vistosa, nem um rico solar. Não é um momento particular da vida da quinta ou da família. Não parece ser um motivo “rico” de viajante ou turista, muito menos de fotógrafo com pretensões antropológicas. Cada uma é uma fotografia banal. As duas juntas encerram um segredo. A datação, estimada, pode ser feita em cerca de 1890.


.......
..............................© Colecção António Barreto

..........Vinte anos depois de as ter comprado e de muitas vezes nelas ter tropeçado, sempre com a mesma estranheza, abriu-se subitamente uma luz. Ao visitar a exposição de fotografias sobre o “Douro”, na Cadeia da Relação, no Porto, organizada pelo Centro Português de Fotografia, encontro uma fotografia igual a uma das minhas, aquela que está “povoada”. Ainda por cima, vejo que pertence aos meus amigos Ângela Camila e António Faria. Para minha alegria, a imagem traz uma breve identificação: “Mesão Frio”. Eis que avancei um passo. Entretanto, mostrei à Ângela a segunda imagem, a “deserta”. Ela ficou tão perplexa quanto eu. Apesar da localização, o segredo persiste.

António Barreto, Janeiro de 2007.

.
...........A terceira fotografia, muito mais bem digitalizada do que as minhas, é a da Ângela e do António.

© Colecção Ângela Camila Castelo-Branco e António Faria

.

Esta secção, Histórias de Fotografias, está aberta a todos os que quiserem contar histórias interessantes das suas imagens.

.

.

2 comentários:

Nuno Borges de Araújo disse...

Caro António Barreto


Se isto não é a confirmação dispensável de que o mundo é pequeno, é pelo menos uma prova de que a fotografia é um múltiplo. Múltiplas são também as informações que circulam à volta das imagens.

Comprei a mesma fotografia, na versão povoada, em 2003, no mesmo local onde a Ãngela Camila e o António compraram o seu exemplar. Recordo-me de ver as duas juntas. Faziam parte do mesmo espólio. Na altura perguntei ao alfarrabista que a vendeu se sabia onde tinha sido tirada. Disse-me que julgava tratar-se de uma propriedade dos Menéres, em Romeu, Mirandela. Penso que a sua informação teria a ver com o seu conhecimento da origem do espólio. É mais uma informação que fica na bolsa das hipóteses que, se não é a que rende mais, pelo menos alimenta o puzzle da memória.

Na minha opinião trata-se do registo feito por um fotógrafo, provavelmente amador, num passeio de grupo a uma casa rural durante uma vindima. Porquê numa vindima? Porque seis dos camponeses que aparecem na imagem estão sem calças e com uns calções bem arregaçadas. Como não temos banhos de sol na tradição rural e esta é a única circunstância em eles mostram a perna, na altura em que a imagem foi tirada deviam ter acabado de pisar um lagar de uvas e estarem a aquecer-se ao sol. A porta da adega onde ficaria o lagar é certamente a que está entreaberta do lado esquerdo. Porquê? Porque quatro dos seis camponeses de calças arregaçadas estão perto dela, é a única que tem largura para entrar e sair uma pipa, e as janelas desta zona da casa (fachada do lado esquerdo) são frestas de ventilação. A tipologia da arquitectura, com aquela varanda e escadaria, não é do sul, nem do centro, é bem nortenha. Na corte ou anexo do lado direito os cunhais são de granito e a alvenaria de xisto. Assim, creio que a localização mais provável é a região do Douro, litoral ou interior.

Provável ainda, é que as cinco personagens no primeiro plano do lado direito da imagem pertençam ao grupo do fotógrafo. O que se encontra mais à esquerda tem aspecto de ser um empregado - o carregador do material fotográfico? - e os quatro à sua direita devem ser seus amigos ou colegas de passeio. Porquê de passeio? Repare que dois dos elementos desse grupo à direita, o único estranho ao contexto rural, tem nas suas mãos uma vara. Uma vara não se usava para sair de casa nem para viajar num transporte, mas levava-se quando se tencionava fazer uns quilómetros a pé.

Porquê outra fotografia com o mesmo enquadramento mas sem viv'alma? Não sei. Pode tratar-se de uma atenção ao dono da casa que gostaria de ter a sua fotografia, ou de um capricho documental do fotógrafo. Quem sabe... Os fotógrafos amadores são, com frequência, registadores compulsivos dos seus itinerários lúdicos, e as suas imagens nem sempre observam os critérios de valor comungados pelo colectivo social.

O que em minha opinião salva esta imagem da pasta das banalidades fotográficas oitocentistas ou das compras impensadas são os pisadores ao sol e, sobretudo, o facto de num segundo plano, à frente da casa, aparecer uma câmara escura portátil e junto a ela uma caixa de madeira, provavelmente usada para transportar as chapas fotográficas.


Nuno Borges de Araújo

Nuno Borges de Araújo disse...

Na sequência do meu comentário sobre esta imagem, venho informar que averiguei junto do actual administrador da propriedade dos Menéres, em Romeu, em Mirandela, que a mesma não foi ali tirada, como me fora sugerido pelo alfarrabista que a vendeu. Em conversa com este último no corrente mês, perguntei-lhe sobre a hipótese de Mesão Frio, e percebi que esta localização é tão hipotética como a outra que me indicara, pelo que lamento, mas creio que voltamos à estaca zero.

Nuno Borges de Araújo